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O que faz uma mulher?

Lígia Cristaldi

Mecha por mecha, o cabelo negro, longo e liso recebeu os bobs que o deixariam ondulado. Fora preso pela manhã. O longo tempo era necessário para chegar-se ao aspecto desejado.

Era dia de festa. O relógio já marcava 23 horas e, além do cabelo, nada da preparação havia começado. Corria apressadamente de um lado a outro sem fazer o que de fato precisaria para adiantar-se. A ansiedade era visível em cada corridinha dos pés descalços que, invariavelmente, terminavam na quina de algum móvel.

– Aiiii!- exclamou ao bater a canela no sofá- Melhor me apressar, ou vou me atrasar.

Deixou os amigos, Álvaro e Sérgio, que já estavam prontos, conversando na sala e dirigiu-se ao banheiro.   As sobrancelhas já estavam feitas, mas os pelos do rosto não se limitam à região dos olhos. Livrou-se de tudo que pudesse atrapalhar o desempenho da maquiagem. Com a pele do rosto lisa, entrou no banho. Raspou as pernas e a axila. Reparou como a pele ficava muito mais macia sem a interferência dos pelos.

Enxugou-se e, ainda no banheiro, deu início à maquiagem. Com uma esponjinha, espalhou o prime pelo rosto, seguido da base. Tudo branco, parecendo pele de gente morta. Quem se depara com aquilo imagina que está dando tudo errado. Engano de principiante. Pincel a pincel, as linhas do rosto vão sendo delineadas. Um pouco de blush cobreado nas bochechas e nas extremidades da testa, um tom mais escuro aplicado entre o maxilar e a cútis, para afinar o rosto. O nariz também recebe linhas paralelas que o deixam mais fino.

Aplicando sombras escuras e claras sobre a pálpebra, os olhos, protagonistas da noite, começam a surgir. Os cílios postiços devem ser postos como muita atenção:

– Tenho os olhos meio caídos. Se errar nessa parte, pode ficar pior ainda-, explica.

Os olhos castanhos escondem-se entre o preto da maquiagem e os prolongados cílios. O toque final é dado com a lente de contato azul-piscina. Olhos claros como água tornam a maquiagem ainda mais espetacular.

– Álvaro, acha minha hot pant, e vem aqui me ajudar a colocar o corset-, exige.

 O amigo, que é gay, sai da sala e segue para o quarto. As roupas estão amontoadas numa bagunça ordenada, dentro do armário. Álvaro, já acostumado com aquilo, encontra tudo que lhe foi demandado e, em poucos minutos, a roupa já foi vestida e o sapato de salto calçado. Os cabelos são finalmente soltos e deslizam sobre os ombros em ondas perfeitas. Muito spray de cabelo é aplicado para garantir que durem até o fim da noite.

Maxi brincos são cuidadosamente colocados e dão o toque final ao visual. A última checada frente ao espelho serve mais para orgulhar-se do que vê do que para ter certeza de que não falta nada. Tudo está correto e o sentimento de poder é inerente à imagem refletida. Tiffany está pronta.

-Podemos ir-, anuncia.

Tira uma foto de si mesma com o celular e, deslizando sobre sapatos de salto alto e fino, deixa o apartamento na companhia dos dois amigos. O contraste entre a sobriedade da vestimenta dos dois rapazes e o “look diva” de Tiffany faz sua diversão começar já na calçada, à espera do taxi, quando nota que todas as atenções estão voltadas para ela.

Quem é Tiffany

A descrição da produção de Tiffany induz ao erro. A imaginação tende a construí-la como uma mulher. Tiffany é, na verdade, Rafael, que, após passar pelo ritual descrito, faz nascer seu conto de fadas.

-Rafa, posso chamar a Tiffany de mulher?

-Ela até pode parecer uma mulher, mas não é não. Ela é uma dragqueen.

O personagem foi criado por Rafael para satisfazer seu desejo de usar roupas e acessórios femininos. Como Tiffany, ele pode comportar-se na balada como uma mulher, dançando de salto alto e jogando os longos cabelos de uma peruca- cuidadosamente presa à cabeça- de um lado para o outro da pista de dança.

A confusão acontece devido ao costume de associar vaidade e os processos acima descritos a mulheres. O fato de o leitor ter imaginado Tiffany como uma mulher comprova a tendência existente na sociedade em conceber determinados comportamentos sociais como naturais. Deixar de associar comportamentos sociais diretamente a necessidades naturais configura uma, entre várias conquistas que ainda precisam ser batalhadas, não só por mulheres, mas por homens. Afinal, quem disse que homem não pode usar salto-alto e mulher precisa se depilar?

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